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SOBRE A QUEIMA E A DESTRUIÇÃO DE LIVROS NA HISTÓRIA / JOÃO SCORTECCI

1) DAS APROPRIAÇÕES DE LIVROS

O “Santuário do Livro” - inaugurado em 1965 - é uma ala do Museu de Israel, em Jerusalém, que guarda os “Manuscritos do Mar Morto”. Os manuscritos formam uma coleção de textos e fragmentos de texto encontrados em cavernas nas ruínas da antiga comunidade de Qumran, no Mar Morto, no ano de 1947, por jovens beduínos (grupo árabe habitante dos desertos, tradicionalmente divididos em tribos ou clãs) que perseguiam uma cabra fujona. Os jovens pastores encontraram numa caverna jarros cilíndricos que continham manuscritos sagrados. Divulgado o achado, arqueólogos e teólogos iniciaram a exploração de 11 grutas da região e conseguiram recuperar uma biblioteca inteira, com rolos intactos e alguns outros destruídos, perto de 15 mil fragmentos. Os “Manuscritos do Mar Morto” são de longe a versão mais antiga do texto bíblico, datado de mil anos antes do texto original da Bíblia Hebraica. Os manuscritos incluem livros apócrifos (escritos por comunidades cristãs e pré-cristãs não incluídos no cânon bíblico) e livros de regras da seita dos Essênios (viviam afastados da sociedade, no deserto, concentrados em estudar o Torá) que viveram em Qumran, entre os séculos 2 a.C. e 1 d.C. A autenticidade dos documentos do Mar Morto foi atestada em 1948. Em 1954, o governo israelense, comprou parte do acervo e, em 1967, na “Guerra dos Seis Dias” (Guerra árabe-israelense), apropriou-se do acervo do Museu Arqueológico da Palestina, até então em posse do governo da Jordânia.

2) A BIBLIOCLASTIA PELA BIBLIOFOBIA DA INTELECTUALIDADE

“Biblioclastia” é a destruição propositada de livros. Os motivos são muitos: ódio ao seu conteúdo, aversão à cultura, medo do desconhecido, do novo, intolerância religiosa, perseguição política, inveja, radicalismo e ideologia. É erro - frequente e comum - atribuir as destruições de livros a homens ignorantes e estúpidos. A história nos mostra – também - um outro universo, desconhecido e ignorado por muitos. Sobram exemplos de filósofos, eruditos e escritores que praticaram em suas vidas a “biblioclastia”. O filósofo, físico e matemático francês René Descartes (1596-1650) seguro de seu método (fusão da álgebra com a geometria fato que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas) pediu aos leitores que queimassem - todos - os livros antigos sobre o assunto. O filósofo e historiador escocês David Hume (1711-1776), que se tornou célebre pelo seu empirismo radical e o seu ceticismo filosófico, não hesitou em exigir a supressão de todos os livros sobre metafísica - filosofia que examina a natureza fundamental da realidade. O movimento futurista - que tinha como principal característica a valorização da tecnologia -, em 1910, publicou um manifesto em que preconizava o fim das bibliotecas. Esqueçam o passado! Os poetas dadaístas colombianos - movimento artístico pertencente às vanguardas europeias do século XX, cujo lema era: "a destruição também é criação", queimaram, em 1967, exemplares do romance “Maria” do escritor colombiano Jorge Isaacs (1837-1895) convencidos de que era necessário destruir o passado literário do país. O poeta e romancista russo Vladimir Nabokov (1899-1977), professor das Universidades de Stanford e Harvard, queimou “Dom Quixote” de Cervantes, no Memorial Hall, diante de mais de seiscentos alunos. O filósofo, escritor e professor universitário Martin Heidegger (1889-1976) tirou de sua biblioteca livros do matemático e filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) para que seus estudantes de filosofia os queimassem, em 1933. O escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) em "O congresso", conto incluído no livro “O Livro de Areia” (1975) fez um de seus personagens dizer: "A cada tantos séculos há que se queimar a biblioteca de Alexandria... queimar o passado é renovar o presente”. Até tu, Borges!

3) JAMES JOYCE, LITTLE REVIEW E O NOJO POR “ULISSES”

O poeta, contista e romancista irlandês James Joyce (James Augustine Aloysius Joyce, 1882-1941) viveu boa parte de sua vida expatriado. Morou em Paris e Zurique. É considerado um dos mais eminentes poetas do imagismo (movimento literário da poesia anglo-americana que favorecia a precisão das imagens e uma linguagem clara e objetiva) e um dos maiores escritores do século XX, tendo utilizado recursos narrativos inovadores para a época, como o fluxo de consciência. Suas obras mais conhecidas: “Gente de Dublin” ("Dublinenses”) (1914), “Retrato do Artista Quando Jovem” (1916) e “Ulisses” (1922). James Joyce faz parte da lista de escritores censurados e perseguidos da história. Quando publicou o livro de contos “Dublinenses”, numa edição de mil exemplares, o impressor, John Falconer, radicado em Dublin, queimou 999 cópias, porque lhe pareceu que a obra não tinha uma “linguagem apropriada”. Um dos romances mais polêmicos e influentes do século XX é exatamente “Ulisses”, de Joyce. Quando da publicação de um trecho de “Ulisses” na revista literária “Little Review”, Nora Barnacle (1884-1951), sua esposa, repeliu o texto com nojo. Carteiros do Correio americano queimaram exemplares da revista “Little Review” para manifestar sua repulsa. Em 1921, a “Sociedade para o Combate ao Vício”, de Nova York, processou os diretores da revista que foram condenados a pagar cinquenta dólares de multa e impedidos de publicar outros capítulos do livro. Joyce encontrou dificuldades para publicar “Ulisses” nos Estados Unidos da América do Norte. A “Shakespeare and Company”, uma famosa livraria da Margem Esquerda parisiense, de propriedade de Sylvia Beach, publicou-o em 1922. Uma edição inglesa publicada no mesmo ano pela mecenas Joyce Harriet Shaw Weaver encontrou censura das autoridades estadunidenses, e as 500 cópias enviadas àquele país foram confiscadas e destruídas. Em 1923, o editor John Rodker imprimiu uma tiragem extra de 500 exemplares - destinada a substituir as cópias destruídas - mas estes livros foram queimados pela alfândega inglesa. “Ulisses” permaneceu proibido nos Estados Unidos até 1933. Embora Joyce tenha vivido fora de sua terra natal durante a maior parte da vida adulta, sua identidade irlandesa foi essencial para sua obra. Seu universo ficcional enraíza-se fortemente em Dublin. Escreveu: "Sempre escrevo sobre Dublin, porque se eu puder chegar ao coração de Dublin, posso chegar ao coração de todas as cidades do mundo.” Em 1940, doente, quase cego e com a chegada da Segunda Guerra Mundial, teve de deixar Paris e, por fim, voltou à Zurique. Morreu no ano seguinte, em 1941, de úlcera duodenal perfurada e peritonite generalizada. Está enterrado em Zurique, no Cemitério Fluntern, junto com sua esposa Nora Barnacle.

4) CIDADÃO INHACA E OS BIBLIÓFAGOS DO APOCALIPSE

Lendo sobre profetas “Bibliófagos”, lembrei-me do bode “Cidadão Inhaca” da cidade de Baturité, do Ceará, dos anos 60. “Inhaca” - benemérito baturiteense - era comedor de livros e jornais e, durante o expediente, montava guarda na porta do Jornal “A Verdade” do padrinho do meu pai Luiz, o saudoso Comendador Ananias Arruda. “Bibliófago” significa o que ou aquele que rói, come ou destrói livros. Os raros casos de bibliofagia estão descritos no Antigo e no Novo Testamento. O sacerdote Ezequiel ("A força de Deus" ou "Deus fortalece") disse que Deus lhe apresentou um papiro e ordenou: "Abre bem tua boca e come o que te vou dar.” Era um livro em forma de rolo. “Homem, come este rolo e depois vai falar aos filhos de Israel." Ezequiel o comeu, obedecendo à ordem Divina. Depois, disse: “Comi-o e eis que na minha boca parecia doce como o mel.” No Apocalipse, do profeta João de Patmos (João, o Visionário), se retoma a ideia de engolir livros: “Vai  e toma o pequeno livro aberto - da mão do anjo - que está em pé sobre o mar e a terra. Toma-o e o devora. Ele será amargo nas entranhas, mas te será, na boca, doce como o mel.” João de Patmos o tomou da mão do anjo e o comeu. “Era, na minha boca, doce como o mel; mas depois de tê-lo comido, amargou-me nas entranhas.” Engolir o livro garantiu-lhe transferência e transmissão do conhecimento divino. Capacitou-o - segundo as Escrituras - a falar várias línguas e se expressar de forma segura e absoluta. Por volta de 130 d.C., o adivinho e interpretador de sonhos, Artemidoro de Daldis, escreveu sobre aqueles que sonham que estão comendo livros: "Sonhar que come um livro é bom para pessoas instruídas, para sofistas e para todos aqueles que ganham a vida dissertando sobre livros.” De tudo do post, lendo “História universal da destruição dos livros”, do venezuelano Fernando Báez, fico com o bode “Cidadão Inhaca”, de Baturité, que comia, literalmente e de fato, livros, com fome de bibliófago.

5) NO TRAVESSEIRO DAS VAIDADES DO MUNDO

O "Livro do Travesseiro" ("Makura no Sōshi") da escritora japonesa Sei Shônagon (c. 966-1017), um inventário da cultura do Japão feudal, escrito no século X, é a principal obra da literatura clássica japonesa. Sei Shônagon foi dama de companhia da Imperatriz Teishi, durante o Período Heian. A obra é um composto de 300 textos curtos, que podem ser lidos em sequência ou ao acaso. Com uma capacidade de produzir “insights” (compreensão de uma causa e efeito específicos dentro de um contexto particular), o livro ilumina tanto os pequenos fatos do cotidiano no Palácio Imperial, como os fenômenos da natureza, as sutis interações da vida social e a refinada trama de valores estéticos, que enlaçam e organizam praticamente todas as esferas da cultura. O “Livro do Travesseiro” foi traduzido para o português por uma equipe de professoras de origem oriental do Centro de Estudos Japoneses da USP e publicado em 2013, pela Editora 34. Pouco se sabe sobre a vida da escritora - nem mesmo o seu nome verdadeiro. Sei Shōnagon é um apelido que recebeu quando entrou para a corte da Princesa Sadako (Imperatriz Teishi). Na época as damas de companhia recebiam um novo nome, composto pelo ideograma do nome de família. O título da obra em japonês - "Makura no sōshi" - vem de um episódio que é contado no Livro, segundo o qual a Princesa Sadako (Imperatriz Teishi) havia recebido de presente um maço de folhas de papel de boa qualidade - artigo de luxo, na época - e não sabia o que fazer com ele. Sei Shōnagon, então, aconselhou a princesa a fazer um travesseiro com o maço de folhas de papel. O "Livro do Travesseiro" foi escrito por volta dos anos 1001 e 1010, quando Sei Shōnagon já vivia retirada da corte, possivelmente como monja em um templo budista, onde terminaria seus dias em preces, orações e abdicação das vaidades do mundo.

6) PEDIDOS DE MORTE

O escritor Franz Kafka (1883-1924) autor dos livros “A Metamorfose”, “O Processo” e “O Castelo” pediu - antes de morrer - ao jornalista e escritor Max Brod (1884-1968) que queimasse seus cadernos. Deixou-lhe, uma mensagem: "Querido Max. Meu último desejo: tudo o que escrevi é para ser queimado, sem ler." Max Brod - teimoso e curioso - desobedeceu e não queimou nada. Para Dora Diamant (1898-1952), sua amante, Kafka pediu a mesma coisa: “Queime tudo!” Dora não o fez. Guardou alguns escritos e 36 de suas cartas para ela. Em 1933, o material acabou confiscado pela Gestapo, de Hitler. Moral da história: Antes de morrer - se for mesmo um pedido de morte - queime-se você mesmo!

7) NIETZSCHE, O BODE E AS DIONISÍACAS DA VIDA

Das tragédias: “Tragos” - que se refere a um bode e - “oidé” - que compreende um canto. Durante as representações teatrais dedicadas ao deus Dionísio (conhecido como o deus da libido e da fertilidade), um bode era sacrificado ao canto de uma “oda” (poema lírico que expressa um forte sentimento) por aqueles que formavam o coro. Dionísio é um dos mais importantes deuses da religião e mitologia grega e o mais humano de todos. Foi o último deus a ser aceito no Olimpo e também o único filho de um simples mortal. Os gregos antigos eram apaixonados por teatro. Foram eles que criaram os gêneros clássicos da dramaturgia: comédia, drama e tragédia. Esta última em sua origem era uma representação marcada por dor e sofrimento. Os atores nas apresentações usavam máscaras enfeitadas com chifres de bodes. O poeta e filósofo prussiano Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), no ano de 1871, publicou a obra "O nascimento da tragédia no espírito da música". Para Nietzsche, a arte - e somente ela - propiciava enfrentar a dor da existência. Sua filosofia central é a ideia de "afirmação da vida", que envolve questionamento de qualquer doutrina que drene uma expansiva de energias. Para Nietzsche, o homem ocidental tem seguido na direção do deus Apolo, mas tem se esquecido da paixão e da energia representada pelo deus Dionísio. As reflexões de Nietzsche - mais recentemente - foram recebidas em novas abordagens filosóficas e se movem ao encontro do "transumanismo" (movimento filosófico que visa transformar a condição humana - com o uso das novas tecnologias - às máximas potencialidades em termos de evolução humana, deixando em segundo plano a evolução biológica, alcançando o patamar de pós-humano). O “bode” e as “odes” estão novamente no teatro das tragédias. Na verdade sempre estiveram. Nunca se ausentaram da dramaturgia da vida. O bode de Dionísio até então dormia o sono do Olimpo, e os poetas em suas odes - apenas eles - resfolegavam libidos poéticos ao léu do espírito da dor e do sofrimento.